Não é fácil ser ciclista mulher no trânsito dessa cidade. Não é fácil mesmo. Além de todos os problemas como falta de espaço, falta de respeito e educação, a mulher ainda enfrenta uma coisa horrível chamada assédio, e que, na minha opinião, beira a um dos mais baixos e sujos tipos de desrespeito a uma pessoa.
Quase todo o dia tenho que me conformar com um “aí sim, hein?!” (esse já virou clichê!), “oi princesa”, “que coisa linda”… e por aí vai. Até aí eu aguento e se estou em dias bem humorados, até dou uma risada simpática como resposta. Outras vezes mostro aquele dedo para dizer “não quero papo” e outras grito um sonoro “vá se f*” e sigo pedalando. Mas, uma hora a gente perde todo o tipo de paciência. E a minha hora chegou hoje.
Nove horas da manhã, indo para o trabalho, na Rua Simão Álvares, entre as ruas do Pinheiros e Arthur Azevedo, em uma subidinha me aparece uma kombi escrita Horti-Fruti com quatro rapazes dentro. O passageiro do banco da frente enfiou o rosto para fora para jorrar algumas frases obscenas que não tenho coragem de repetir aqui. Eu poderia seguir o meu caminho, estava atrasada, pra quer dar atenção a estes cabeças de bagre? Mas hoje a minha tolerância se esgotou.
Obviamente, segundos depois dos desaforos, o semáforo fechou, a kombi parou no trânsito e eu passei por eles novamente. Mais frases impossíveis de engolir. Com toda delicadeza, parei a minha bike bem em frente a kombi, desci dela, abri a minha bolsa, peguei a minha chave, destravei a minha U-Lock do quadro, tranquei ela novamente, mas agora segurando-a em minha mão, virei para o cara da kombi, mostrei a U-Lock e perguntei:
“Quer perder o retovisor?!”.
Claro que ele disse NÃO!
Então pede desculpas
Desculpas (sorriso cínico, mas muito cínico no rosto)
Pede desculpas sem esse sorriso cínico
Desculpas (com o sorriso cínico na cara)
[detalhe… o trânsito todo esperando!]
Se você não tirar esse sorriso cínico da cara eu vou estraçalhar esse vidro da kombi.
[Aí o motorista interviu]
Como assim moça?! Vai destruir nossa kombi?! Pelo amor de Deus não faz isso, desculpa, desculpa, desculpa…
O safado que tinha falado as obscenidades ficou perplexo. O sorriso cínico sumiu e virou uma verdadeira cara de espanto e medo.
Ela dizia “desculpa, pelo amor de Deus, essa kombi é do trabalho, não quebra o vidro não, desculpa”. E pra melhorar, parou um motoqueiro do meu lado pra saber se estava tudo bem e se eu precisava de ajuda. Aí os caras ficaram com mais medo.
Eu dei um sermão nesses idiotas, falei, gritei, esbravegei que isso era para eles nunca mais insultarem uma mulher na vida deles.
O idiota ainda replicou dizendo que falou aquilo porque me achava linda, estava me elogiando e ainda completou “mas também agora pra mim você é feia!”. E eu continuei gritando, disse pra ele que elogio de gente do tipo dele pra mim é ofensa, tenho nojo, e que se ele não calasse a boca ele ia perder o vidro.
Ele ainda disse mais desculpas, que eles eram trabalhadores, não mereciam estar passando por isso… e eu disse “também sou trabalhadora e também não mereço passar por isso”. Fui embora pedalando a mil por hora, com sangue nos olhos, com a revolta expressada em todos os meus movimentos. Tive que parar por alguns minutos para refletir sobre tudo aquilo, sobre toda aquela raiva.
Comecei a pensar nos olhares assustados destes caras da kombi, como se eu fosse uma pessoa armada, prestes a cometer um crime. E, realmente, eu estava armada. A U-Lock ali cumpria a mesma função que uma arma, um revólver. Mas quer arma mais dolorosa do que as palavras? Do que a falta de respeito? Isso é o que mais me machuca.
Sou contra atitudes agressivas. Não gosto disso. Mas também não consigo ser conivente com tamanha falta de respeito. Esse cara da kombi não desrespeitou só a mim. Desrespeitou a minha família que me educou, desrespeitou o meu namorado, desrespeitou a família dele, quem sabe até, a esposa e os filhos dele?! Tá difícil engolir tamanho desaforo!
Já subindo a Teodoro, mais calma e concetrada no esforço físico e no trânsito, um carro passou bem pertinho de mim. Fiquei pensando “lá vem”. E veio um motorista homem, bem devagarzinho, que falou: “acompanhei tudo desde lá de baixo, você fez muito bem!”. Agradeci, ele foi embora, e fiquei contente em saber que mais pessoas reprovam a atitude do cara da kombi. Não que a minha estivesse totalmente correta.
.-.-.-.-.-.